sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

“Homicídio sem cadáver” e decisão de pronúncia: possibilidade




Muita se fala e se discute acerca da possibilidade de ser processado, pronunciado e, ao final, condenado acusado de ter cometido crime de homicídio quando não há o encontro do corpo, ou seja, quando não há prova direta da materialidade do crime (homicídio sem cadáver).
O presente artigo tem por escopo analisar com breves considerações tal situação e apontar a possibilidade da existência de ação penal e consequente pronúncia de acusado que responde pelo crime de homicídio mesmo sem que seja encontrado o corpo da vítima, sendo o fato julgado pelo corpo de jurados do Tribunal do Júri.
Antes de tudo, cabe salientar que a decisão de pronúncia trata-se de simples juízo de admissibilidade da acusação, devendo o julgador, em sua análise, restar limitado à existência de prova da materialidade do delito e suficientes indícios de sua autoria, não necessitando exame aprofundado da prova (o que deverá ser feito pelos juízes leigos, os jurados, que serão os juízes naturais da causa).
Como se sabe, a decisão interlocutória de pronúncia não é decisão de mérito, mas sim de caráter processual, e encerra a primeira fase dos processos de competência do Tribunal do Júri.
Acontece que em alguns (não raros) casos de homicídio tem-se a situação na qual o objeto material jamais foi localizado, ou seja, o cadáver da vítima nunca foi encontrado. Este aspecto, para alguns, desde logo, faz com que seja imperativa a decisão de impronúncia, já que, sem o exame de corpo de delito direto (exame necropsia), não haveria como se comprovar a existência do crime.
Por óbvio, o aspecto apontado confere alguma complexidade aos casos.
O ponto a ser analisado diz respeito exatamente à questão da prova da materialidade e sua determinação, na hipótese vertente.
Preceitua a norma do artigo 413 do Código de Processo Penal o que segue:
“Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.” (grifou-se)
Mas como se prova a materialidade de um homicídio? Em regra, com o laudo pericial que demonstre a ocorrência do crime (necropsia).
Entretanto, é possível chegar-se à materialidade também com o auxílio de outras provas, especialmente a testemunhal, conforme se aduz do artigo 167 do Código de Processo Penal:
“Art. 167.  Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.” (grifou-se)
Tal como afirma o Professor Cezar Roberto Bittencourt, em seu Tratado de Direito Penal, existem “três formas de comprovar a materialidade dos crimes que deixam vestígios, quais sejam: exame de corpo de delito direto, exame de corpo de delito indireto e prova testemunhal”.[1] (grifou-se)
Na mesma esteira, explicita a doutrina de Julio Fabbrini Mirabete que “a prova do homicídio é fornecida pelo laudo de exame de corpo de delito necroscópico. Quando não é possível o exame direto (o corpo da vítima não é encontrado ou desaparece) permite-se a constituição do corpo de delito indireto por testemunhas, por exemplo, não o suprindo a simples confissão do agente”[2] (grifou-se)
Assim, em casos nos quais há impossibilidade física de realização do exame de corpo de delito, uma vez que não localizado o corpo da vítima, bem como impraticável a realização de exame indireto, em que há sempre um juízo de valor feito pelos peritos, algo que não ocorre com a prova testemunhal supletiva, para a comprovação da existência do fato resta, tão-somente, a possibilidade da prova testemunhal, que, se houver, poderá suprir o exame de corpo de delito, direto ou indireto (art. 167 do Código de Processo Penal).
Desse modo, havendo nos autos elementos probatório que convençam o magistrado da existência do crime, mesmo que seja prova testemunhal, cabível a decisão de pronúncia, a qual levará o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Ou seja, tendo em conta que a decisão interlocutória de pronúncia não se trata de condenação, basta o convencimento da existência do crime  e a existência de indícios suficientes de autoria delitiva, para que a decisão seja encaminhada aos jurado.
Cabe mencionar que a jurisprudência dá amparo à pronúncia mesmo quando não há prova direta da materialidade do crime de homicídio e tem aceito a prova da materialidade baseada em prova testemunhal.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão de lavra do Ministro Carlos Veloso, entende que na ausência do corpo de delito, mas havendo indícios veementes da existência do crime e da autoria, as dúvidas quanto à certeza do crime e da autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. “HABEAS CORPUS”. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI. CORPO DE DELITO: AUSÊNCIA. INDÍCIOS VEEMENTES DA EXISTÊNCIA DO CRIME E DA AUTORIA. CPP, art.408.I. - Por ser a pronúncia mero juízo de admissibilidade da acusação, não é necessária prova incontroversa do crime, para que o réu seja pronunciado. As dúvidas quanto à certeza do crime e da autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri. Precedentes do STF. II. – H.C. indeferido”.
III. (HC n° 73522/MG – STF - DJ 26/04/96) (grifou-se)
Na mesma linha, entendem o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO QUALIFICADO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. AUSÊNCIA DE LAUDO COMPROBATÓRIO DA MATERIALIDADE. IRRELEVÂNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. ORDEM DENEGADA. I. Havendo nos autos outros meios de provas capazes de levar ao convencimento do julgador, não há falar em nulidade processual por ausência do exame de corpo de delito. II. A impetração não conseguiu ilidir a prova da materialidade nem os indícios de autoria, não restando evidenciada qualquer ausência de suporte probatório para o oferecimento da exordial acusatória. III. O trancamento da ação penal, por falta de justa causa, só é possível quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, hipóteses não verificadas no caso dos autos. IV. Ordem denegada.” (HC n.º 39788-ES. STJ) (grifou-se)“REVISÃO CRIMINAL. - O requerente busca o reexame da condenação sem apresentar prova nova, alegando a precariedade da prova que ensejou sua condenação. Não é possível tratar a Revisão Criminal como uma segunda apelação. Precedentes. - Do voto do eminente Desembargador MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS, quando do julgamento do apelo, se constata claramente que a manutenção da condenação tem apoio em elementos de prova que constam dos autos. - Lembramos, quanto ao tema (''Prova da materialidade do homicídio''), passagem das lições do mestre HUNGRIA (''Será possível o êxito de um processo penal por crime de homicídio sem que apareça o cadáver da vítima? Dizia CARRARA: "Não se pode afirmar que existe crime de homicídio, enquanto não esteja averiguado que um homem tenha sido morto por obra de outro. E não se pode dizer que um homem haja morrido, enquanto não se encontra o seu cadáver ou, pelo menos, os restos deste, devidamente reconhecidos." Tal critério é demasiadamente rigoroso, e poderia, na sua irrestrição, conduzir à impunidade de manifestos autores de homicídio. Haja vista o caso citado por IRURETA GOYENA: dois indivíduos, dentro de uma barca no rio Uruguai, foram vistos a lutar renhidamente, tendo sido um deles atirado pelo outro à correnteza, para não mais aparecer. Foram baldadas as pesquisas para o encontro do cadáver. Ora, se, não obstante a falta do cadáver, as circunstâncias eram de molde a excluir outra hipótese que não fosse a da morte da vítima, seria intolerável deixar-se de reconhecer, em tal caso, o crime de homicídio. Faltava a certeza física, mas havia a absoluta certeza moral da existência do homicídio. Conforme justamente observa GOYENA, não se deve confundir o "corpo de delito" com o "corpo da vítima", e para a comprovação do primeiro basta a certeza moral sobre a ocorrência do evento constitutivo do crime.''). - Por outro lado, a alegação de insuficiência de provas não dá ensejo a revisão. Precedentes. - Tratando-se de processo da competência do Júri, não podemos olvidar da posição defendida pelo eminente DESEMBARGADOR IVAIR NOGUEIRA ITAGIBA, apoiada pelo ilustrado DESEMBARGADOR NELSON HUNGRIA, quando da discussão que resultou na aprovação da Conclusão XLV, da Conferência dos Desembargadores (in CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO ANOTADO, EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, edição histórica, Tomo II, Vol VI, pág. 135, Editora Rio). REVISÃO CRIMINAL IMPROCEDENTE.” (Revisão Criminal Nº 70017801481, Primeiro Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 03/08/2007) (grifou-se)
“CÓDIGO PENAL. ART. 121, § 2°, INC. II E III DO CP. HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO FÚTIL E MEIO CRUEL. [...] Prova suficiente de que o corpo da vítima foi jogado, com o intuito de garantir a impunidade, em uma sanga, ou seja, com o objetivo de evitar ou dificultar sua descoberta e a investigação do crime. PRELIMINARES REJEITADAS. APELAÇÃO MINISTERIAL PROVIDA, EM PARTE, PARA AUMENTAR A PENA. UNÂNIME. APELO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO. POR MAIORIA.” (Apelação Crime Nº 70016163941, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 11/10/2006) (grifou-se)
“APELAÇÃO CRIME. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO CONTRA DESCENDENTE, OCULTAÇÃO DE CADÁVER E ABANDONO DE MENOR. A materialidade, na falta do corpo de delito, pode ser comprovada pela prova testemunhal. Inteligência do art. 167 do Código de Processo Penal. [...]” (Apelação Crime Nº 70013588066, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 29/03/2006) (grifou-se)
Em conclusão, a partir da breve argumentação acima lançada, verifica-se que é possível sim o processamento de ação penal, a pronunciação (pelo magistrado) e até mesmo a condenação (pelo Tribunal do Júri) de acusado pela prática de crime de homicídio mesmo sem que seja encontrado o corpo da vítima.
 
                                                                                   Flávio Augusto Oliveira Karam Jr

SEM CORPO NÃO HÁ CRIME, POIS QUAL SERIA A CERTEZA DA MORTE?



O que se tem mais ouvido nos últimos dias é esta frase indagatória:

Sem corpo não há crime, pois qual seria a certeza da morte?

Muitos profissionais da área do direito continuarão se amparando em aspectos que inviabilizem a propositura de uma ação penal contra um acusado, sustentando que sem o corpo não existe prova da morte ou, ainda que se tivesse a morte como certa, não se poderia investigar as suas causas determinantes. Logo, como saber se houve um homicídio? E se após a condenação do suposto autor o “morto” aparecer vivo?
Sempre digo que, que cada caso tem suas particularidades. De fato o exame de corpo de delito é importante, porém não imprescindível para a comprovação do crime, podendo ser suprido por outros elementos, tal como exames de DNA comparando amostras de sangue encontrado no suposto local dos crimes com material colhido de familiares das vítimas, principalmente com o avanço tecnológico e, também, da medicina legal que caminha a passos largos. Assistir, hoje, a um episódio do seriado norte americano CSI não é se entreter, somente, com uma simples ficção, mas realidade atual pura.
Muitos sustentam ser plenamente possível a ocorrência de um crime de homicídio sem cadáver. Pois, mesmo não sendo encontrado o cadáver, não se pode dizer que o objeto material o crime não existe. Ele existe, somente não foi localizado. É claro que para a ocorrência do homicídio é necessário a existência de um corpo sem vida. Se não há corpo sem vida, não há crime. O que pode acontecer é que, mesmo existindo o corpo, este não foi encontrado mas o crime pode, perfeitamente existir.
A maioria, porém acredita que não é possível haver crime de homicídio sem cadáver. O crime de homicídio é um crime material, ou seja, que exige uma conduta e um resultado naturalístico resultante desta conduta. Por se tratar de um crime material, a sua prova exige, além da autoria, a "materialidade delitiva". A materialidade delitiva do homicídio só se prova com a ocorrência da morte de uma pessoa, o que exige, inevitavelmente, uma análise no corpo da pessoa. Portanto, se não há como provar a ocorrência, inequívoca, da morte da vítima, também não se pode falar em homicídio.
Ocorre, também, não haver dúvidas de que pode haver o oferecimento da denúncia, da pronúncia e até mesmo condenação pelo Tribunal do Júri nos casos de crimes contra a vida, sejam tentados ou consumados, sem que o corpo da vítima seja localizado. Para que isso ocorra a prova testemunhal é suficiente. Todavia, a lei é clara no sentido em que a confissão do réu não pode suprir o exame de corpo de delito, direto ou indireto (art. 158, parte final, CPP). A única fórmula legal válida para preencher a sua falta é a colheita de depoimentos de testemunhas, nos termos do art. 167: "Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta".
Apesar de, a confissão ser a chamada “rainha das provas”, a legislação impede que se possa suprir o exame de corpo de delito, pois sabido a fragilidade da confissão como meio de prova de admissibilidade de culpa pelas inúmeras razões que podem fazer com que uma pessoa confesse falsa ou erroneamente, um crime ou sua participação dele, por pressão, física ou psicológica, colocando em grave risco a segurança exigida pelo processo penal. Assim, ilustrando, se o cadáver, no caso do homicídio, desapareceu, ainda que o réu confesse ter matado a vítima, não havendo exame de corpo de delito, nem tampouco prova testemunhal, não se pode punir o autor. A confissão isolada não presta para comprovar a existência das infrações que deixam vestígios materiais.
Sem o cadáver, como então levar a Júri os suspeitos de um crime?
Vejamos o que diz a lei:
Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008
O embate no Tribunal do Júri já são outros quinhentos.......


                                                                                    Usama Muhammad Samara