quinta-feira, 29 de novembro de 2012

É possível o 'homicídio sem cadáver'?

Na doutrina penal, uma questão de grande relevância causa tormentosa discussão: é possível o 'homicídio sem cadáver'? Melhor explicando, é possível que haja o reconhecimento da ocorrência de um crime de homicídio sem que o cadáver da vítima tenha aparecido?
"Ensina-se, em processo penal, que, quando um delito deixa vestígios (delitos não-transeuntes), é imprescindível a realização do exame de corpo de delito (artigo 158, CPP). Corpo de delito, na definição de Sérgio Demoro Hamilton, é 'aquilo que torna o crime ou a contravenção palpável, sensível, tangível, perceptível aos sentidos'. O exame de corpo de delito é o exame pericial realizado sobre o corpo de delito. No homicídio, o corpo de delito é o cadáver. Os exames de corpo de delito relacionados são a perinecroscopia (exame em local de morte violenta – artigo 6º, I, CPP) e a necropsia (exame médico-legal realizado sobre o cadáver – artigo 162, CPP). O cadáver, portanto, é a materialidade do homicídio, é a prova indubitável da ocorrência de um evento morte.
"Assim, uma interpretação rasa do artigo 158 do CPP poderia conduzir à conclusão de que não se pode imputar um crime de homicídio a alguém no caso de desaparecimento do corpo da vítima. Todavia, a questão é mais complexa.
"De acordo com doutrinadores de escol, a exigência de exame de corpo de delito em crimes não-transeuntes é uma exceção ao princípio do livre convencimento motivado, pelo qual o magistrado pode apreciar livremente o suporte probatório carreado aos autos, sem que uma prova tenha valor maior do que as demais, desde que fundamente a sua decisão. Diz o artigo 158 do CPP que nem mesmo a confissão do acusado pode suprir a falta de exame pericial. Haveria, portanto, a consagração do princípio da prova legal ou tarifada, em que uma prova se sobrepõe às demais. O magistério, contudo, não encontra suporte na Constituição Federal de 1988. Marcellus Polastri Lima, em excelente obra, sustenta que, 'se a antinomia com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional restava evidente (aliás, a Exposição de Motivos do CPP informa que este é o princípio reitor em matéria de provas), com o novo texto constitucional deve ser repensado o valor absoluto, por muitos defendido, do exame de corpo de delito, e se realmente a confissão do acusado não poderia ser considerada pelo juízo na falta deste'. A atual Carta Magna, em seu artigo 5º, LVI, dispõe que, em processo penal, não serão admitidas as provas obtidas por meio ilícito. Ou seja, sendo lícitas, quaisquer provas podem ser admitidas para fundamentar uma decisão. A confissão do acusado, por exemplo, se obtida em conformidade com o ordenamento jurídico, pode se prestar para embasar um decreto condenatório, ainda que não haja a realização do exame de corpo de delito.
"Ademais, ainda que não se entenda pela incompatibilidade do artigo 158 do CPP com a Constituição, deve ser observado que existem dois tipos de exame de corpo de delito, segundo a lei processual: o exame direto e o indireto. No primeiro caso, a perícia é elaborada diretamente sobre o corpo de delito (por exemplo, a necropsia realizada em um cadáver). Há, por seu turno, o exame indireto quando, desaparecidos os vestígios, outra prova pode ser tomada para comprovar a materialidade do crime. É o que dispõe o artigo 167 do CPP, tratando, especificamente, da prova testemunhal (aplicável, entretanto, a qualquer outro meio de prova idôneo, como, v. g., a prova documental). O processo penal, portanto, possibilita a condenação do agente sem a produção de prova pericial direta.
"Conclui-se, destarte, que é possível a responsabilização do agente por um crime de homicídio, ainda que esteja desaparecido o cadáver da vítima. Esposamos a idéia de que a exigência de exame de corpo de delito não é compatível com a ordem constitucional vigente. Outrossim, não havendo vestígios a serem examinados (o cadáver), admitir-se-á o exame de corpo de delito indireto. Posição contrária consagraria a impunidade e privilegiaria o agente que, além de matar a vítima, ainda oculta o seu corpo, demonstrando maior reprovabilidade em seu comportamento. Em um caso concreto ocorrido no Rio de Janeiro, um casal culposamente matou a filha recém-nascida por sufocação. Como eram estrangeiros residindo ilegalmente no país, decidiram pela ocultação do cadáver da criança, que foi esquartejado, colocado em uma bolsa e atirado em uma lagoa. O crime somente foi relatado cerca de um ano depois de ocorrido, não havendo, assim, qualquer chance de se encontrar o corpo nas águas. Várias testemunhas do fato, todavia, confirmaram a morte da criança, bem como a própria mãe, ao narrar que viu o corpo enrijecido e gelado da própria filha. Parece-nos clara a hipótese de responsabilização por homicídio culposo e ocultação de cadáver (artigo 211, CP)
                                                                                     Professor Bruno Gilaberte


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